17 novembro 2010

Linhagem dos Itamaes


Além de suportar um verdadeiro inferno em uma cozinha japonesa de Kyoto, o mais difícil mesmo, é manter a tradição da gastronomia, nos tempos de comida Fusion. Em uma recente visita de um grande mestre de um restaurante de Kyoto, o Sr.....(Japonês nunca gosta de se identificar) me contou curiosidades, que mesmo no Japão de hoje, está sumindo.


Ele me contou que, na época de “Shugyou – Treinamento”, era o verdadeiro campo de treinamento militar. Desde o tom de voz e clareza nas palavras, era exigido pelos superiores. Trabalhou por 3 anos, sem ser chamado pelo nome, o que é comum, todos os novatos terem o apelido de “Ahiru – Pato” “Bouzu – Moleque”, dependendo da região. Ele e outros companheiros do mesmo nível, um incentivava o outro, pois era difícil de suportar. Quase que obrigatoriamente, um chorava solitariamente dentro das cobertas, no alojamento para os funcionários. O Ex-“Hanaita” (Master Chef da Cozinha Japonesa) conta que, quando um deles ficava deprimido ou furioso, com tanta humilhação diária, segurava o ombro do colega, olhava nos olhos dele dizia: “Todos nós estamos sofrendo. Não é só você!! Está puxado para todo mundo!! Força!!” e conseguia, pelo menos resolver a situação na hora. Claro que muitos desistiram e partiram de volta para casa.


Ele lembra que, no começo, ouvia dos superiores: “Novato, não tem que ter opinião!! É sim senhor e só!! Está com raiva, seja um grande Itamae!!” E foi isso que muito fizeram. Se esforçaram, suportaram níveis antes desconhecidos, e chegaram onde chegaram.


Perguntei para o chef, qual foi a situação que mais marcou, pensando em uma situação que ele tinha vivido na subida da carreira dele.


-- Foi quando me “transferiram” para um restaurante de um dos nossos “irmãos”, pois ele já estava para aposentar. – Em muitos restaurantes no Japão, onde se serve a culinária de Kyoto, há uma linhagem traçada ao longo dos séculos. Dessa forma, mesmo que sejam restaurantes distintos, há uma hierarquia a ser seguida. – Nesse dia, pude ver o que realmente era o inferno. Um inferno, calmo, sem ninguém gritando com você, uma tranquilidade de dar medo. Enquanto você é um funcionário, você simplesmente obedece e trabalha. Ao assumir o comando de uma casa, tudo cai sobre a sua cabeça. Seus novos funcionários ficam aguardando as suas ordens, os clientes esperam uma boa comida, um autêntico atendimento de Kyoto e mais uma série de coisas, que antes você não enxergava. Claro que com o tempo, você vai pegando o jeito, mas nunca mais tirei folga. Mesmo sozinho, ficava na cozinha, tentando sentir a atmosfera e fazendo daquele lugar, uma parte do meu corpo. Era o primeiro a chegar e o último a ir embora. Mas um dia, quando um dos nossos “irmãos mais velho”, estava com um funcionário desfalcado na restaurante dele, me pediu para que “emprestasse” por dois dias. Aí foi o dia que mais tive medo. Até cogitei de eu ajudar. Mas ele disse que o capitão, nunca deve abandonar o barco. E ainda por cima, me pediu o funcionário mais novo que eu tinha. Dei o dinheiro da passagem e mandei para o restaurante. Confesso que esse dia, não consegui me concentrar no meu serviço. Mas assim que passaram os dois dias, o meu “Irmão velho” me telefonou, me agradecendo e que eu me tornara um verdadeiro Hanaita. Eu não pulei, não gritei como fazem muitos. Mas me sentei no chão e senti uma mistura de alívio, como felicidade, aprovação e mais responsabilidade


Hoje o Chef, aposentado, mora em Hokkaido com a esposa, e tinha vindo ao Brasil, no último Festival do Japão.


Chef, muito obrigado, pelas excelentes palavras, e espero que quem esteja lendo, saiba que trabalhar em um restaurante, vai muito além de fazer comida.